sábado, outubro 15, 2005

A Senhora e a Sociedade

Estou passando os dias como um zumbi. Os olhos vermelhos e as atitudes retardadas denunciam meu estado de debilidade. Meu chefe e meus colegas de departamento perceberam com pouca dificuldade que havia algo de errado comigo. E de fato há.
Novamente esta noite não dormi bem. Venho tendo desagradáveis pesadelos em que algum membro da sociedade da qual convivi, vi, ou apenas ouvi falar, me espancava enquanto repousava indefeso. Durante a madrugada última, sem conseguir voltar a dormir após o indesejado sonho, prometi a eu mesmo procurar um terapeuta na manhã do dia seguinte, visando resolver o problema.
Quando me deslocava para o consultório me deparei com uma cena mais perturbadora do que a minha famigerada insônia. Uma senhora, bastante marcada pelo tempo, aparentando ter de setenta a oitenta anos, trajada com um vestido de tecido grosso e estampa florida, já bastante mirrado, carregando duas grandes e pesadas trouxas sob passos lentos e tropegantes na calçada desnivelada. O sol da manhã começava a queimar. Adentrei no local de minha consulta e aguardei por uns trinta minutos o atendimento marcado. Durante esta meia hora vi a pobre senhora passar pela frente do consultório, agora seguindo o caminho inverso, ainda com toda a bagagem que carregava anteriormente. Pensei se perdida estaria ela.
No consultório, de frente para o terapeuta, um famoso membro da sociedade “bem sucedida” da cidade, contei a minha situação dando ênfase para os famigerados pesadelos. Venho os enfrentando desde o momento em que perdi o cargo de redator chefe no jornal onde trabalho por denunciar as badernas do filho de um poderoso industrial na cidade. Senti-me bastante injustiçado e na pele como é ser vítima da sociedade hipócrita em que vivemos. O profissional que me escutava atentamente recomendou que eu me acalmasse e procurasse apagar a idéia negativa da sociedade que havia tomado conta de meu consciente. Ao fim da consulta, retirei-me do recinto, não muito satisfeito. Do lado de fora me surpreendi ao ver à senhora que continuava a vagar, agora, nitidamente sem direção. O sol estava em seu auge. Não resisti e procurei me aproximar a fim de perguntar se poderia ser útil. Mais próximo da anciã, pude perceber o quanto cansada e desgastada estava a pobre humana. Já havia caminhado a manhã inteira pela bela avenida em que trafegavam advogados, médicos e engenheiros dentre outros, em seus belos automóveis. Sua situação de penúria não havia comovido nenhum membro da sociedade que ali transitavam!
Talvez pelo cansaço e pelo sol na cabeça que já havia levado, a senhora demonstrava-se um pouco perturbada. Quando lhe indagava o que fazia em baixo daquele sol com aquele peso que carregava, ela respondia com dificuldade que procurava ir para casa. Ofereci-me a levá-la, porém não reconhecia o local que ela me descrevia. Uma pequena casa azul, com uma imagem de santo na frente. Não sabia ela informar nome da rua, o bairro, ou sequer confirmar se era esta mesma a cidade. Pensei em ajudá-la através do jornal em que trabalhava. No entanto, em meio ao meu atual cargo pouco poderia fazer a não ser sugeri-la como pauta para um a reportagem. Telefonei imediatamente para o atual redator chefe que de imediato descartou a possibilidade de tal espaço, pois segundo ele a tal pauta sugerida não se enquadrava no perfil de matérias lidas pelos consumidores do jornal, industriais e executivos.
Desolado restou-me pedir ajuda. Fui com ela até um hotel próximo, onde conversei com o recepcionista, explicando-lhe a situação da criatura necessitada. Nitidamente incomodado ele respondeu-me.
_ Posso tomar conta dela por algumas horas enquanto aparece algum policial estadual ou guarda municipal a fim de encaminhá-la para um órgão competente, porém não posso mantê-la dentro do hotel. O dono se encontra nesta filial e não gostaria de ver esta velha maltrapilha no saguão de seu estabelecimento.
Restou a ela aguardar o apoio na calçada. A mim restou comprar um guarda sol para protegê-la do massacrante ardor dos raios solares. Peguei o telefone da recepção do hotel para me inteirar mais tarde do destino dado a pobre senhora que tentei ajudar.
Sai às pressas, estava atrasado para o expediente vespertino do jornal. Já havia faltado o período matutino para ir ao terapeuta que pouco havia me ajudado. No meio da tarde telefonei para a recepção do hotel na esperança de ouvir boas notícias. Todavia foram angustiantes as palavras do funcionário.
_ Eu tentei entregá-la para dois guardas que caminhavam pelo local fazendo a ronda costumeira. Eles me informaram que a tal senhora é uma moradora de rua, e há anos percorre a avenida principal com suas trouxas a procura da suposta casa azul. Por fim mandaram informá-lo que não era para se preocupar. Depois da falácia, se foram e deixaram a velha trôpega ao relento. Eu por minha vez a tirei da calçada do hotel, pois ela estava constrangendo os nobres clientes de nossos serviços.
Aquele parecia não ser o meu dia. Quase não rendi no trabalho e levei uma advertência do superior. Ao final fatigante do expediente voltei para casa sem a alegria de quem retorna ao lar para descansar. Sabia que teria pela frente mais uma longa noite e madrugada de pesadelos e insônia. Tentei assistir o ultimo repórter da televisão, onde foram noticiados as frases com alto teor critico do senhor presidente aos grevistas. Como resultado do cansaço acabei adormecendo. Alguns minutos depois teve início o esperado pesadelo diário. Desta vez, porém, podia observar particularidades. Quem espancava eram as habituais figuras da sociedade a qual eu havia convivido ou visto durante o dia. No entanto desta vez a vitima não era a de sempre, eu, e sim a senhora que tentei ajudar pela manhã. A tragédia do sonho acontecia no mais importante cruzamento da avenida principal. Os guardas com suas armas em punho começavam o espancamento. Completamente indefesa a senhora não oferecia nenhuma resistência e caída recebia os sopapos. Em seguida vieram o terapeuta, meu chefe e os colegas que trabalham comigo no jornal. Cada qual com um grande porrete, estavam o industrial e seu filho marginal. Advogados, médicos, engenheiros e executivos contribuíam com a barbárie pisando e chutando a cabeça da senhora, que a esta altura já se encontrava totalmente desfigurada. Não parava de chegar gente de todas as profissões, famosas e anônimas, professores e alunos, mestres e discípulos. O dono, o recepcionista e os clientes do hotel se amontoavam para ao menos chutarem as pernas da quase defunta. Assustei-me quando identifiquei em meio à multidão o presidente, ladeado pelo repórter da televisão, ambos atirando pedras na pobre vitima. Ao contrario dos pesadelos anteriores em que acordava antes de meu falecimento, neste a velha foi totalmente dilacerada. Só então me acordei. A televisão ainda estava ligada, entretanto, fora do ar.
Passei, como já era de costume, o resto da madrugada em claro. Pela manhã segui, novamente como um zumbi para a redação, disposto a mostrar serviço, mesmo enfatigado pelo sono atrasado, a fim de recuperar a minha imagem perante os superiores do jornal. Logo que cheguei foi me entregue uma pauta para que eu desenvolvesse. O chefe da redação informou em tom eloqüente que era a minha ultima chance. A pauta me chocou o bastante motivando a minha renúncia do emprego. _ Anciã morre espancada na avenida principal. _ Os nomes foram omitidos.

Tiago Eloy Zaidan

O Chamado da Morte

Viajar é preciso mas dependendo da viagem , a volta transforma-se na grande dificuldade. Todos os dias conhecemos casos de pessoas que realizaram viagens sem volta.O mais antigo hiato de tempo registro como elucidativo da fragilidade da vida. Estávamos em Joaçaba , fazendo a cobertura de uma bobagem envolvendo algum vendedor de salsicha do meio oeste. Era tarde da noite e, cansados , ouvimos os apelos do motorista – grávido de nove meses – para voltarmos imediatamente para a Capital.
O certo seria beber aquele banho , buscar uma horizontal e zarpar bem cedinho, todos refeitos da jornada. Mas concordamos porque, afinal, não iríamos dirigir. Ainda bem que não consegui pegar no sono porque,à altura da Serra do Mar, antes de Urubici, percebi com meio olho que a kombi estava saindo da pista.
Dei um salto do desconfortável banco e olhei para o surfista crente , nosso motorista. Dirigia de olhos fechados. Puxei o volante para a direita e disparei dois tapas na cara do candidato a pai quase prematuramente morto – tinha apenas 24 anos.
Alguns dias depois descobri que nosso motorista não tinha sido atacado pelo sono. Quem o buscava naquela noite era a morte – Heron teve um infarto agudo e perdeu uma das boas coisas da vida, viajar com o crescimento de um filho.
O segundo flagrante da insignificância da vida tive numa viagem para Divinópolis. Acordamos ainda noite para partir às 4 da madrugada. Carro cheio, dirigi ininterruptamente por 16 horas, só parando para abastecer e ir ao banheiro. Comemos no carro, conversamos muito, ouvimos música , as crianças dormiram, todos dormiram e descobri-me só , diante do infinito segundo que separa a vida e a morte, numa curva da Fernão Dias.
Um automóvel ultrapassou em sentido contrário, não conseguiu vencer o caminhão e ficamos meio que frente a frente, sem direito a acostamento porque a pista estava( ainda está!) em obras. Acabamos abençoados porque descobrimos espaços onde não havia e saímos ilesos, nós e o outro motorista , do qual , juro , pude ver os olhos esbugalhados de terror.
Passamos dez maravilhosos dias numa fazenda e voltamos sãos e salvos ao lar . Estas duas histórias permitiram-me mais uma viagem dentre as muitas que realizo com prazer – embrenhar-me na rodovia das letras , dividindo pistas com substantivos advérbios, adjetivos pronomes ,singulares orações , pleonasmos e vocativos , palavras síntese do caminho que o cérebro trilha a cada novo dia, nova viagem da imaginação.

Márcio Dison

A Morte do Escritor

Por que este constante desejo de suicidio? este fantasma que me assombra noite e dia?... Este demonio que atormenta meu espirito, clamando pelo fim...
Ai, de repente, o desejo de escrever... de por este tormento no papel... de registrar essa dor, transmiti-la para outros.... transmiti-la atraves de outros!...
As vezes parece que viemos para isso? Sofrer... e escrever sobre o sofrer! Para que outros aliviem os seus proprios sofrimentos...
Sera que Virginia Woolf teria escrito “Mrs. Dalloway”, sem esse desejo de acabar com a propria vida? Sem o desejo de acabar com essa vida arrastada... uma vida aprisionada pelo tempo... que nos corroi, que nos consome lentamente?...
... E o que dizer de Sartre, Thompson?...
A morte fe-los criar vidas!...
A morte... a mais fiel companheira do homem... a mais fiel amante de um escritor!...
Quisera eu que, assim como em Sartre, a morte tambem me fizesse criar textos maravilhosos... obras-primas...
Mas nao... Sou esteril ate na maior das inspiracoes...
Paro por aqui...
Desligo o computador...
... e volto a pensar na vida!...
... O escritor morre... (...) mais uma vez!...

Edweine Loureiro

O Amor

Poderia ter sido um dia como tantos outros.
Um dia triste repleto de nuvens cinzentas contidas, preocupadas em esconder a sua tristeza, mas sem sucesso, deixando escapar por vezes umas gotas aqui outras ali.
O vento soprava suavemente tentando animá-las fazendo com dançassem ao som de uma valsa voltando-se ora para um lado ora para outro.
A tristeza era tanta que não davam sequer a possibilidade ao sol de aparecer.

Inesperadamente eis que surge um som trazido pelo vento, não ouvido há muito tempo.
Alheios a tudo tocaram os sinos da Sé, tão fortemente que era possível ouvi-los a quilómetros de distância como que se anunciassem que algo se iria passar.
De facto aconteceu naquela terça – feira e antes que tocasse a ultima badalada, nascia um menino lindo de olhos cor-de-mel, de pele tão branca como as nuvens felizes e chorão com se espera que os bebés sejam.

Como que por magia as nuvens e o vento desapareceram, dando lugar a um céu lindo azul claro e permitindo ao sol brilhar de alegria.
A partir desse dia nunca mais se ouviu falar nas nuvens cinzentas.

O menino crescera feliz entre muita brincadeira e traquinice, como outra criança qualquer.
Meigo desde que nascera, demonstrou desde sempre uma grande paixão pelas coisas belas que a vida lhe oferecia.
Dava atenção ás coisas mais simples, aquelas que embora estejam ao alcance de todos, ninguém vê, resvalando na indiferença.

Como tudo levava a crer, tornou-se um lindo jovem com um sorriso de uma simplicidade sem limites, e exibindo-o, esperava com isso mudar o mundo, sempre preocupado com tudo o que o rodeava que por vezes se esquecia de viver.
Passados alguns anos, ao passar por um jardim, algo lhe fez despertar aquela curiosidade que tanto o caracterizava.

Reparou então que entre as mais belas e coloridas flores do jardim, estava uma flor diferente. Poderia ter passado despercebida, rodeada de tanta beleza, cor e perfume, mas a sua tristeza transparecia por entre a sua cor lilás.
O sol parecia não conseguir chegar até ela, por mais que tentasse, reflectia sem conseguir penetrar, sentindo-se recusado por motivos que não compreendia.

À medida que o jovem se aproximava dela, mais encantado ficava com a sua beleza triste e com o seu perfume único.
Já perto dela, ajoelhou-se na terra húmida.

Sem razão aparente, toda aquela magia parecia ter entrado no seu coração, ficando horas contemplando a sua beleza.
O que sentia não era comparável a qualquer outro sentimento que já tivera, tornando-o assim único.
Uma atracção quase que doentia o atraí-a aquele lugar e todos os dias àquela hora se repetia a magia, fiéis a um ritual que ambos se habituaram fazendo já parte das suas vidas.
A flor correspondia ao encanto, desde o primeiro encontro parecia ter feito as pazes com o sol, deixando que a sua alegria iluminasse as suas pétalas e deixando de ter aquele aspecto triste que sempre tivera.

Muito embora não conseguissem falar, existia entre eles uma cumplicidade irracional, sentimentos inexplicáveis por razões óbvias, num mundo de regras e convenções impostas desde que nascemos, não permitindo que a vida nos pertença por completo, mas, que pelo menos nos é permitido sem censura no universo da fantasia.

Maria Helena Santos

Meias

- Vamos?
- Vou calçar as meias...
- Todas brancas, não gosto de ter que procurar par certo, na verdade queria estar sempre com o par certo, porém não acredito que os encontre. São todas brancas, mas nem por isso é um par. Quem olha de longe pode até pensar que este é o par certo, até os meus olhos podem enganar-se, mas os pés sabem.
Quando as coisas foram feitas para serem duas não funcionam sendo uma. Eu poderia, colocar um sinal e assim ficar sabendo qual é o par, mas eu não funciono, afinal uma meia não cobre os dois pés.
- Se eu comprasse cores diferentes? Não acredito que algum dia encontrarei o par certo e além dos pés meus olhos veriam que não estou adequado, enxergo demais com os olhos , não dou atenção para os pés, por isso continuarei assim, afinal são todas brancas...
-Vamos?

Máximo Martins

Rosinha

“Pôs quando tu me deste a rosa pequenina...”
Eu, tão pequenina quanto, olhava – a admirada. Por uma magia inusitada e, talvez até indevida, gritava:
-Mãe, a rosa! A rosa pequenina! Essa é a rosa do Pequeno Príncipe?
-Pode ser minha filha, pode ser. Se, para você, ela é, então é!
E, após me responder, mamãe falara baixinho, pensando certa de que não ouvia:
-A rosa pequenina...”A que será que se destina?”.
E eu, já encantada com a minha primeira rosa, fiquei inquieta – “a que será que se destina? –”.
Sem entender nada, passei 20 anos com isso guardado bem dentro. Até que, um dia qualquer, escutei. O som, vindo do rádio da diarista lá na cozinha, gritava aos quatro cantos dos meus sentidos”:
- “Pôs quando tu me deste a rosa pequenina...”
Estanquei! “A que será que se destina?”.
-Porquê tanto encantamento naquela rosa pequenina, porquê?
Sozinha, isso me conduzira até a janela também pequenina do banheiro. Por ela, vi prédios enormes e, na calçada, uma criança. Corri para meus sobrinhos e perguntei enfática:
-Vocês gostariam de ganhar uma rosa pequenina?
Todos, menos o mais novo, disseram que não queriam:
-Pra quê?
O mais novo, pequeno, disse:
-Quero, quero!
Eu, olhando o chão que me faltava nas respostas, olhei o pequeno; abracei – o com um sorriso incapaz e saí solene buscando alguma rosa que em vão e ridícula é plástico resina estampada como linda nos covardes jarros que, como muitos de nós, aceitam tanta falsidade.
Será o homem plástico (a) resina? Jurava que aqui batia um coração puncionando sangue, mas são pilhas, fluidos; plástico resina (imensamente pequenina). Será?

Ana Carolina Bomfin Jacó

O CIENTISTA BÊBADO E O RINOCERONTE

UM CIENTISTA bêbado decidiu viajam para o espaço sideral. Quando lá chegou, pensou está em sua terra natal. Balbuciou qualquer coisa, mas tudo que conseguiu pronunciar foi “olá” e caiu desfigurado. As palavras eram monossilábicas e o pensamento alado. Quando acordou, creio que umas duas horas depois, o bêbado passou a desbravar aquele lugar. Uma perna lá e outra cá, andou uns vinte metros em direção ao nariz e caiu em seguida, desfigurado.

Aquele lugar era deserto. Sinistro. Como uma paisagem de cemitério ao cair da noite. Naquele ambiente, tudo era muito triste, sombrio e deprimente. Se existia vida naquele ambiente, o narrador não sabe dizer. O certo é que aquele mundo não parecia mundo. Tudo ali não fazia sentido algum. A única coisa que o narrador percebeu é que existia uma grande nave, parada no ar e dentro dela um grande computador, onde um ser não identificado, com uma inteligência sobre-humana, comandava o universo através de um botão gigante e de um teclado, onde digitava palavras de ordem. Se aquilo era ilusão, sonho ou realidade, também o narrador não sabe dizer. Sabe-se que dentro daquela nave existia uma máquina que comandava o cérebro dos viventes.

Naquele universo metafísico e psicológico, real ou imaginário, tudo era muito novo. O certo era o errado e alto ficava em baixo. O magro era gordo e o rico era pobre. Tudo ali parecia muito original. Um novo mundo, um novo planeta! E naquela realidade existia um bêbado que pensava ser gente.

Tudo o que o bêbado dizia não fazia sentido algum. Alias, nunca o que os bêbados, assassinos, racistas, terroristas, políticos e fanáticos dizem faz sentido. As frases que o bêbado pronunciava eram desconexas, sem referencia alguma à realidade.

Quando o bêbado tentou pronunciar uma frase mais real, o aparelho fonador emitiu um som, como que de um animal. Depois de muito esforço, conseguiu pronunciar a palavra “deslumbrante”. Quanto mais o bêbado lutava para por em ordem os seus pensamentos, mais ele se perdia em suas recordações.

De baixo de uma grande árvore, de uma mangueira centenária, passou a identificar aquele lugar como sendo o de sua infância pobre em família. Ali, chorou copiosamente. O remoço foi inevitável. Lembrou-se como fora mal para com os irmãos menores, para o meio ambiente e para os animais. A máquina, aos poucos, fora lhe transformando num outro homem, sem sentimento, egoísta e perverso.

Depois de identificar algumas paisagens daquele ambiente, o bêbado passou a procurar algum registro da presença humana naquele ambiente. Percorreu aquele mundo pensando não ser ele o primeiro a pisar no espaço sideral. Meio zonzo por não reconhecer nada do que o circundava, começou a desesperar-se.

Se o ambiente ali era indescritível, por não fazer referencia alguma à realidade vivente, seria difícil encontrar alguém com aspecto mais miserável naquele universo do que o do bêbado.

Era forte, de estatura mediana. Parecia ter de trinta e cinco a quarenta anos. Na cabeça, usava um boné com aba de couro. A camisa, presa ao corpo, de tecido grosseiro, trazia a imagem e os dizeres de um político da região. Trajava calças esfarrapadas e sapatos sem meias. Carregava, numa das mãos, uma garrafa de uísque e na outra uma medalha de seu santo protetor. O suor que escorria pelo peito cabeludo, tornava sua aparência ainda pior.

Quando tentou, pela terceira vez, manter comunicação com o mundo externo, tudo o que conseguiu perceber foi os seus próprios movimentos. Num gesto de coragem e bravura, gritou por socorro e tudo o que ouviu foi o seu próprio desespero; como se alguém gritasse dentro de uma caixa de ressonância magnética.

Aos poucos tomou consciência que estava só entre milhões de seres iguais a ele, a única diferença era que ele queria ser o dono da situação, dar um sentido para tudo aquilo, quando percebe que não consegue fazer o que a razão lhe diz, torna-se amigo das plantas, dos animais, enfim, do universo.

Numa constante indagação socrática do conhece-te a ti mesmo, o bêbado começou a interroga-se: quem sou eu? O que é o universo? O que é a realidade? Existe um sentido para tudo isso? Será que estou sozinho no mundo? Existe vida após a morte?

Questiona o bêbado. Quer entender o bêbado. Faz mistério o bêbado. Canta o bêbado. Dança o bêbado. Recita salmos o bêbado. Crê o bêbado que aquele mundo não é real. Quando olha para o mar, o bêbado vê nas margens, além de folhas secas, mariscos para alimentar o seu corpo frágil e indescritível. Depois de muita força intelectual, percebe as marcas da batalha entre a civilização e a barbárie. Recorda que fora ali a batalha entre o Bem e o Mal. E conclui dizendo: - “O bem, deveria vencer sempre!”.

O Bêbado observa personalidades históricas como Herodes, Lutero, Hitler, Sartre, Nietzsche, Getúlio Vargas e Pablo Picasso. Eles acenam com as mãos para o bêbado, num baile sincronizado e desesperador. Pedem perdão e misericórdia ao bêbado. O bêbado ri daquelas pobres almas e segue explorando aquele mundo, aquele universo psicológico, virtual e irreal.

O bêbado vê corpos destroçados e almas penadas. Em vão, tudo se move. Os pássaros voam sem direção. Em curvas linhas e retas o bêbado também segue explorando aquela realidade virtual. Quando passa por um cavalo galopando, tenta apear sela e cai em seguida. – “Isso aqui, não faz sentido algum!”, reclama o bêbado.

Numa sinfonia sinistra e macabra aos olhos dos humanos, o bêbado ri, canta e brinca com figuras de outro mundo. - “Por que me busca, se sou apenas um homem?”, pergunta o bêbado ao rinoceronte. – “Tu não és um homem. Tu és apenas um cientista!”, responde o rinoceronte com voz humana. – “Como assim, um rinoceronte?”, quer entender o bêbado. – “Observe as plantas”, respondeu o rinoceronte. Elas seguem as estações do ano. Algumas têm frutos, outras apenas galhos secos. Assim deve ser o ser humano. E você deve seguir o seu próprio destino”. – “E qual é o meu destino?”, perguntou o bêbado. – “Desvendar os enigmas da realidade; se vale a pena ou não viver num mundo cheio de egoísmo, violência e descrença”. – “Creio que não, senhor rinoceronte! É por isso que vivo sobre os efeitos da bebedeira. A realidade é dura de mais para os simples mortais, como eu. Somente os fortes sobrevivem. Eu, como sou frágil, prefiro viver numa realidade virtual. Aqui tudo é maravilhoso. Não sinto dor, fome e nem existe egoísmo. Entre os meus companheiros praticamos o comunismo, tudo é de todos. A mais valia, aqui não existe. Veja só: eu não sei como vir parar aqui, só consigo lembrar que saia de casa para o trabalho. Ia a pé, porque não tinha dinheiro para o transporte, quando um amigo meu me chamou e começamos a beber. Eu estava sem um tostão no bolso. E agora acordo e estou aqui conversando com você, creio que estou ficando doido”, concluiu o bêbado. – “Você estar enganado, respondeu o rinoceronte. Ninguém é livre. Veja só aquela máquina. Até ela é dominada por alguém. Ninguém é livre para fazer o que quer. Somos livres para fazer somente o que não queremos”.

Os ditames do mundo ébrios fizeram daquele pobre homem um cientista de si mesmo. Chorando como uma criança indefesa, chamava pela sua mãe e não era atendido. Falava de coisas desconexas para os racionais, mais era aplaudido pelos irracionais. Para os seres que haviam se depreendido da nave, tudo o que o bêbado falava fazia sentido. Se ele rezasse, logo se tornaria deus. Se ele cantasse, logo se tornaria pope. Se ele dormisse, cedo sonharia com a amada. Se ele fosse político, logo se tornaria presidente. Se ele dançasse, seria confundido com Michael Jackson. Mais, se ele ensinasse tudo o que sabe sobre o mundo das ciências, logo seria taxado de professor, louco ou filósofo.

A ameaça pedagógica foi forte. Todos os seres que o escutavam, gritaram em uma só voz: - “Nos ensina, mestre dos mestres. Comande nossas vidas. Queremos que seja o guisa da nave-mãe. Queremos ser filósofos”. E ele se livrou daqueles seres com uma frase de Emanuel Kant (1724-1804): “Não se ensina filosofia, aprende-se a filosofar”, disse em voz alta.

Quando cessou o eco de sua voz, o bêbado pensou estar só, mas não estava. Os seres, das mais estranhas espécies, entre eles políticos, religiosos, cientistas, terroristas, ateus, machistas e preconceituosos, o seguiam. Conforme a sua caminhada, rumo a lugar nenhum, naquele imenso espaço sideral, o bêbado se sente um dos piores seres da terra. Não tinha dinheiro para o pão das crianças. Não tinha educação. Não tinha sorte. Não tinha vida. O bêbado cantou uma canção, que era mais ou menos assim: – “não chores meu filho, não chores que a vida vai melhorar. Tome o que é seu e siga a sua missão. Cuidado com a corrupção, se não você acaba que nem eu, sem o dinheiro para o arroz e o feijão”. O bêbado cantou, cantou até ficar só. – “Ninguém agüenta mais essa música, disse o rato com voz humana, que representava a classe dos políticos.

O bêbado andou por caminhos desconhecidos. Percorreu estradas que nenhum outro ser humano percorreu. Descobriu que o planeta que ora explorava não era muito diferente do seu. Afinal, qual era mesmo o seu planeta? Percebeu que ali nada fazia sentido. Tinha gente incrédula, violenta, racista, preconceituosa e exploradora da miséria humana.

Aberta a ferida da consciência, o bêbado decidiu voltar e logo percebeu que estava no quintal de sua casa. Deixou aquele lugar imediatamente que voltou a si. – “O mundo do bem é maravilhoso. Mas este mundo ninguém constrói sozinho. Precisamos nos ajudar mutuamente na construção do mundo da luz”, pensou.

O bêbado ainda andou por longas ruas e cidades perdidas em busca de um sentido para tudo aquilo. Procurou uma ordem e só encontrou o caos. Perguntou aos que passavam onde estava o sentido da vida, mas todos olhavam atentos para uma criança que chorava copiosamente e ninguém lhe respondeu onde encontrar a verdade das coisas.

- “No mundo de hoje, meu filho, o certo pode ser o errado, tudo depende dos interesses”, disse uma senhora idosa, apoiando-se numa bengala. – “Quem é a senhora?”, perguntou o bêbado. – “Eu sou aquilo que você quer que eu seja”, respondeu a senhora, agora com outro aspecto, mais jovem, aparentando estar na flor da juventude. – “Então, tu serás a minha guia. Eu preciso sair desse mundo”. – Eu não posso ser aquilo que tu não queiras”, respondeu. – “Sim, eu quero. Preciso urgentemente me encontrar”. – Faça tudo o que manda o seu coração. Se ele diz que é para você ser bom, então seja! Aconselhou aquela jovem.

O bêbado continuou andando pelo mundo dos alcoólatras, drogados, dos incrédulos, dos políticos, dos radicais, dos machistas, até que encontrou o Amor. Passou muito tempo, horas, dias, meses anos, mas o bêbado voltou a realidade. O pior de tudo isso é que a realidade do universo ébrio, continua alegre, chamativo e colorido, enquanto que o mundo real, no qual habitam os seres humanos, continua deprimente, egoísta e triste.

Até quando o bêbado vai agüentar o tédio da vida real? Será que vale a pena viver sobre os horrores da realidade ou sobre as maravilhas da vida virtual? O bêbado encontra-se distante dessa discursão, não alheio. No momento, encontra-se divulgando a filosofia do equilíbrio. Prega ele: - “Deixaremos o mundo tão tolo e patético, assim como o encontramos, se não falarmos do que sentimos com amor. A paciência, o respeito, e a fé, são virtudes imprescindíveis para a paz”. Ao ensinar essa nova filosofia, o bêbado-cientista é criticado pelo mundo capitalista. Os meios de comunicação divulgam calúnias ao seu passado. Tem recaído o cientista bêbado. Passa a andar entre os covardes, mentirosos, ladrões e assassinos. Quando vem em seu auxilio Isaac Newton, dizendo: “O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano”. Com isso, o bêbado se reergue da tumba. Mira em direção aos seus objetivos e reencontra o horizonte perdido. Encontra força e paz, numa perfeita sincronia entre o passado, presente e futuro. Aos poucos o ilusório se torna real, o longe fica perto e o escuro claro.

Enquanto isso, no mundo dos bêbados e dos viciados, dos incrédulos e dos religiosos, dos políticos e covardes, dos terroristas e machistas, o rinoceronte despetelava uma flor de pampolha e os outros seres estranhos ao mundo dos humanos, brincam com as crianças e professores, com as donas de casa e com os filósofos, de Bem me Quer e Mal me Quer.

Luís Carlos Lemos da Silva